“A fome só se satisfaz com a comida 

 e a fome de imortalidade da alma

com a própria imortalidade.

Ambas são verdadeiros instintos.”

Fernando Pessoa

Referência: História da Beneficência Portuguesa do Rio de Janeiro (1840/1955), Adalberto José Pizarro Loureiro, Rio de Janeiro – 1960. (9º Leilão Livraria Carioca/Rio Antigo)

“… a história da Beneficência Portuguêsa

é um pouco da história brasileira da cidade do Rio de Janeiro

e muito da história da ação da gente lusitana no Brasil.”

“A história da Sociedade Portuguesa de Beneficência confunde-se, a muitos aspectos, com a história da Colónia Portuguesa na capital brasileira.

Na verdade, o sonho do bacharel em direito José Marcelino da Rocha Cabral, grande patriota e grande homem de acção, fêz nascer a Sociedade em Maio de 1840.” (H. Martins de Carvalho, Ministro da Saúde e Assistência de Portugal, Lisboa, Maio de 1960)

“Em julho de 1840, ano da maioridade do Imperador Pedro II, era ainda o Rio de Janeiro uma cidade semi-colonial. Estamos em plena escravatura e muitos hábitos citadinos do tempo dos Vice-Reis e dos Ouvidores se mantêm anquilosados na vida geral da Côrte. A navegação a vapor só se estabeleceria em 1851, o telégrafo em 1852, o gás em 1854 e a Central do Brasil em 1858.”

“A Beneficência até 1848 é um simples sonho que homens de sentimento e de patriotismo teimam em converter em realidade.”

‘Alea jacta est’, a sorte está lançada, foi o lema de Hermenegildo Antônio Pinto.”

“… a decisão, a coragem, o patriotismo e a bondade de um homem de rara envergadura – Hermenegildo Antônio Pinto – fêz erguer, em 1º de março de 1849, uma enfermaria sob a proteção de São Vicente de Paulo, que salvou numerosos portuguêses na maior epidemia de febre amarela da história sanitária do Rio de Janeiro.” (Rua Santo Amaro, 80)

“O ano de 1850 seria crucial para a vida da cidade do Rio de Janeiro e para os destinos da Sociedade Portuguêsa de Beneficência.”

“… em 16 de setembro de 1858, dia do aniversário natalício de D. Pedro V, então Rei de Portugal, o Visconde da Estrêla inaugurava o Hospital de São João de Deus, na rua Santo Amaro.”

“Anos mais tarde, aquêle hospital-semente era apenas uma pequena peça, de grande valor histórico, é certo, no conjunto social e arquitetônico da obra da Beneficência Portuguêsa. Esta passaria a ser padrão do trabalho associativo português no Rio de Janeiro. Seria o paradigma modelador de dezenas de Beneficências Portuguêsas espalhadas pelo Brasil, …”

“… O objetivo inicial da agremiação foi o de socorrer, com donativos, os portuguêses necessitados, angariar-lhes trabalho, repatriá-los nos casos extremos, ensinar-lhes as primeiras letras e iniciá-los nos misteres profissionais. Beneficência Portuguêsa foi, por isso, ela chamada.

Oito anos mais tarde, por proposta do associado João Nunes de Andrade, surgia a ideia do hospital, que se concretizaria dez anos depois. O vulto do empreendimento já não comportava o sistema de quotas dos primeiros cooperadores. Era indispensável criar um corpo de associados, cuja contribuição dada de uma só vez e, para sempre, garantisse a êste, em tôdas as emergências, a segurança do tratamento dos males físicos.”

“Embora eleita em 28 de dezembro de 1861, a Diretoria sob a presidência do Visconde do Souto só tomou posse em 28 de dezembro de 1862, ou seja, um ano depois. Tivera a Beneficência, durante um ano, duas Diretorias.”

“Em 15 de dezembro de 1863, era eleita nova Diretoria, sob a presidência ainda do Visconde do Souto. Pouco depois, êsse titular declinava do cargo de presidente, mas o corpo eleitoral ratificou-lhe a confiança.”

“Neste biênio da administração do Visconde do Souto, há um fato histórico a assinalar: a construção de uma enfermaria isolada, no terreno vago ao lado esquerdo do edifício. Benzida no dia 20 de setembro de 1863, … tomou o nome de Enfermaria de S. Jerônimo. Criada para atender à epidemia de varíola e outras moléstias contagiosas, a conselho dos médicos, prestou ela assinalados serviços à causa da saúde pública do Rio de Janeiro.”

“A Beneficência Portuguêsa vivia, nesse ano de 1864, uma das épocas mais difíceis da sua história. Se as direções anteriores trabalharam, sobre-humanamente, para tornar realidade o sonho do Hospital – luta de dois titãs beneméritos, Hermenegildo e Visconde da Estrêla – a Diretoria do Visconde do Souto defrontava a grave responsabilidade de não deixar morrer o sonho cristalizado, de fazer frente às exigências assoberbantes da manutenção do hospital com déficits que estavam desfalcando a conta de Patrimônio e ameaçavam a própria sobrevivência da instituição. Para agravar a situação, esboçava-se uma das mais sérias crises econômico-financeiras do país. E este era o comércio português – o mais importante da cidade – o que contribuía com maior contingente na soma dos recursos que afluíam à instituição. Era um novo e terrível obstáculo que se erguia diante daquela casa, talvez para provar a dedicação, o heroísmo e o patriotismo dos seus responsáveis.

A 12 de junho era inaugurado o quadro com os sete diretores que realizaram a tarefa histórica de construir o Hospital, tendo como principais artífices o presidente Visconde da Estrêla – o realizador – e Hermenegildo Antônio Pinto – o idealizador. Dizia nessa ocasião o Visconde do Souto: ‘Bem felizes foram esses porque a Providência lhes deixou de pé suas grandes obras e a sua grande ação. Deus não delega em todos a tarefa sublime de lhes observar os preceitos e erigir templos aos seus mandamentos! Esses que aí vêdes foram dos seus privilegiados!’

Essas palavras denunciavam já o drama do Visconde do Souto. Homem íntegro, sentia ele que a maré montante da desgraça rugia aos seus pés. Já a pressentia quando declinou da sua eleição para presidente – cargo que teve de aceitar pelo ato de confiança do corpo eleitoral.

O Visconde do Souto ia inscrever o seu nome, por um golpe aziago do destino, no friso dos grandes homens da Beneficência. Aproximando-se a fase aguda da crise, ainda de pé a firma Antônio José Alves Souto & Cia., já aquela nobre figura se ia afastando dos atos de responsabilidade do seu cargo, que pudessem amanhã prejudicar a instituição. Não assinava as atas do corpo eleitoral, das assembleias gerais, do Conselho Deliberativo, delegando no vice-presidente as atribuições do seu cargo.”

“No dia 10 dêsse mês de setembro, explodiu a crise comercial prevista, e que ia prejudicar sensivelmente a Sociedade, cujos baluartes humanos eram constituídos de homens do comércio.

Nessa conjuntura difícil, o Visconde do Souto honraria o seu nome e, o que é mais, o seu mandato de presidente da Beneficência, da qual, ao pressentir os primeiros sinais da crise, se quisera afastar. A Sociedade tinha em depósito na Casa Antônio José Alves Souto & Cia. cerca de cinquenta contos de réis. O chefe da firma era o Visconde de Souto. A Casa Bancária faliu. Mas, antes, aquêle honrado português promoveu, por intermédio do Tesoureiro da Sociedade, a retirada daquela grande importância para a época. A sua honradez e o seu amor à instituição não permitiram que a Beneficência, que lutava já com grandes dificuldades, perdesse aquêle dinheiro. No dia 28 de setembro, o Visconde do Souto resignava o cargo de presidente da Beneficência, nestes termos: ‘As circunstâncias excepcionais em que os últimos acontecimentos desta praça me colocaram, impossibilitando-me de exercer o honroso encargo de presidente da Sociedade, impõem-me o dever de o resignar, passando o exercício às mãos do senhor vice-presidente, pedindo-lhe o favor de transmitir à Mesa esta deliberação, a fim de prover como entender conveniente. Aproveito a ocasião para pedir-lhe, outrossim, queira fazer constar a todos os dignos colegas, os sentimentos de reconhecimento que me acompanham nesta despedida pela valiosa cooperação que sempre me prestaram, e os votos que faço pela prosperidade do estabelecimento a seu cargo.’

A Diretoria fêz tudo quanto pôde para que o Visconde do Souto desistisse do seu propósito. Tudo inútil. Em homenagem, porém, às virtudes daquele homem a quem a desgraça ferira economicamente, mas não lhe maculara o caráter e a alma, a Diretoria concedeu-lhe o pedido com a seguinte resolução: ‘O vice-presidente ocuparia interinamente a presidência, enquanto durasse a impossibilidade de S. Excia’, conforme consta do Relatório de 1866.”

Vida que segue …